(Artigo publicado na Carta Maior, em 14 de fevereiro de 2012)
“A pergunta diz respeito à democratização dos instrumentos de comunicação. Evidentemente, nesse setor, prevalece, com maior intensidade ainda, o espírito autoritário. Sabemos que as concessões de rádio e de televisão são distribuídas por critérios exclusivamente políticos, partidários e até personalistas. A primeira ideia que me ocorre, sem entrar no exame detalhado da matéria, através da consulta feita às entidades de classe nela interessadas, parece ser a criação de um Conselho Nacional de Comunicações que tenha participação direta não apenas na decisão da concessão de rádio e de televisão, mas, sobretudo, na fiscalização do seu funcionamento.”
(Tancredo Neves em sua primeira entrevista coletiva à imprensa como presidente da República eleito pelo Colégio Eleitoral, 17 de janeiro de 1985)
A posse do Conselho Estadual de Comunicação Social (CECS) da Bahia, em janeiro deste ano, ressuscitou o argumento de “inconstitucionalidade” que havia surgido logo depois que a Assembleia Legislativa do Ceará aprovou, por unanimidade, o Projeto de Indicação nº 72.10, que recomendava ao governador Cid Gomes (PSB) a criação do CECS, em outubro de 2010.
À época, a primeira manifestação veio do presidente da Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Ceará, Valdetário Mota. No dia 22/10/2010, ele afirmou que o Projeto de Indicação era inconstitucional: “Da forma como está (o projeto indicativo), ele cerceia a plena liberdade de expressão e é inconstitucional” (ver aqui).
Três dias depois, o Colégio de Seccionais da OAB, reunido em Brasília, fez publicar uma nota contundente de “repúdio” ao projeto cearense. Vale a pena lembrá-la.
“O Colégio de Presidentes dos Conselhos Seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), reunido extraordinariamente em Brasília nesta segunda-feira (25/10/2010), vem manifestar o seu repúdio aos projetos de criação de órgãos vinculados ao Executivo para monitorar os veículos de comunicação em diversos Estados da Federação. E o faz com crescente preocupação ante as graves consequências que os mesmos podem causar à livre manifestação de expressão e à liberdade de imprensa, fundamentais para a normalidade do Estado democrático de Direito. As Assembleias Legislativas não possuem competência legislativa para regulamentar a matéria, que é privativa do Congresso Nacional. As balizas constitucionais para o exercício da liberdade de imprensa devem ser objeto de apreciação do Poder Judiciário, resguardando-se o devido processo legal, sendo indevido transferir tal atribuição a órgão de controle vinculado ao Executivo. A Ordem dos Advogados do Brasil reafirma o seu compromisso com a Constituição da República, da qual a liberdade de imprensa é indissociável” (ver aqui ).
A nota do Colégio de Seccionais foi seguida (26/10/2006) de declarações do presidente nacional da OAB,Ophir Cavalcante, à rádio CBN, nas quais afirmava que a entidade ingressaria com uma ADIN (ação direta de inconstitucionalidade) no Supremo Tribunal Federal caso o governo do Ceará sancionasse o projeto aprovado pela Assembleia Legislativa (ver aqui).
Repetição exaustiva
O fulcro “legal” do argumento apresentado pelos senhores advogados era de que “as Assembleias Legislativas não possuem competência legislativa para regulamentar a matéria, que é privativa do Congresso Nacional”.
De fato, o inciso IV do artigo 22 da Constituição Federal reza:
“Artigo 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
IV – (...) telecomunicações e radiodifusão.”
A outra acusação, claro, é de natureza diferente. Trata-se de insinuar que os CECS constituem ameaça grave “à livre manifestação de expressão e à liberdade de imprensa” garantidas pela Constituição e princípios basilares da democracia liberal.
Diante dessas objeções, a primeira questão que surge é: onde, em quais artigos, o Projeto de Indicação nº 72.10, aprovado pela Assembleia Legislativa do Ceará, se propõe a “legislar” sobre “telecomunicações” e/ou “radiodifusão”? A segunda, também óbvia, é: em quais estados da Federação existem quais “projetos de conselhos estaduais de comunicação” que ferem o artigo 22 da Constituição? E a terceira, de que forma o projeto cearense e outros (quais?) ameaçam as liberdades de expressão e de imprensa?
As declarações e as notas da OAB, infelizmente, não respondem a essas questões. Apesar disso, a grande mídia nacional repetiu – à exaustão – que “os conselhos estaduais de comunicação” – vale dizer, qualquer um – seriam, por definição, inconstitucionais.
De que se trata?
A autora da iniciativa cearense, deputada Rachel Marques (PT), publicou em sua página da internet, em 23/10/2010, uma nota oficial na qual defendia o projeto. Dentre outros pontos, afirma:
“A proposta de Conselho de Comunicação não é um ataque a liberdade de expressão e um mecanismo de censura. Longe disso, os conselhos são mecanismos democráticos, que integram os interesses de determinado setor, a exemplo dos conselhos de educação, saúde e assistência social, que têm como finalidade principal servir de instrumento para garantir a participação popular na construção das políticas e dos serviços públicos, envolvendo o planejamento e o acompanhamento da execução, no caso específico, uma política pública estadual de comunicação. (...)
“O Conselho de Comunicação é uma demanda antiga das organizações sociais, movimentos sociais, jornalistas e empresários, para promover a participação social na comunicação no Brasil. Inclusive há a previsão de tal órgão na Constituição, no Artigo 224, que diz: ‘Para os efeitos do disposto neste capítulo, o Congresso Nacional instituirá, como seu órgão auxiliar, o Conselho de Comunicação Social, na forma da lei’, com direito a constituição de organismos similares nos estados” (ver aqui).
Em artigo publicado neste Observatório em 2 de novembro de 2010, mostrei (1) que a ideia dos conselhos estaduais de comunicação não tinha surgido na 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), mas sim em proposta da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), em 1986; (2) que, a exemplo do Conselho de Comunicação Social do artigo 224 da Constituição Federal, os conselhos estaduais estão previstos como órgãos auxiliares dos Executivos e/ou dos Legislativos estaduais e/ou municipais, em pelo menos treze constituições e em leis orgânicas, inclusive a do Distrito Federal; e (3) que o projeto de indicação cearense não fere nenhuma norma constitucional (ver “Sobre inverdades e desinformação”).
A reação dos senhores advogados – encampada, ampliada e difundida pelos grandes grupos de mídia privada, não só no Ceará – resultou na não aceitação pelo governador Cid Gomes da “indicação” da Assembleia Legislativa. Ademais, os CECS, foram, sem mais, carimbados no espaço público midiatizado como “inconstitucionais”.
O CECS da Bahia
Apesar de tudo isso, o processo de regulamentação do artigo 227 da Constituição da Bahia – que previa, desde 1989, a criação do conselho estadual de comunicação – estava em andamento e prosseguiu. Fruto de intensa mobilização da sociedade civil e com o apoio do governador Jacques Wagner, um projeto de lei foi enviado à Assembleia Legislativa, aprovado e os conselheiros tomaram posse no último dia 10 de janeiro (ver “Conselhos Estaduais de Comunicação: a Bahia inaugura uma nova etapa”).
Importante observar que a OAB-BA, ao contrário das manifestações anteriores da OAB nacional e do Ceará, não só se manifestou favoravelmente à criação do CECS-BA como seu presidente lembrou em audiência pública, realizada na Assembleia Legislativa em 25/11/2010, que o projeto estava “atrasado” porque há 21 anos já deveria ter sido colocado para apreciação da Casa, quando foi aprovada a Constituição Estadual que prevê a criação do CECS (ver “Para OAB-BA, Conselho estadual é constitucional e não ameaça a liberdade de expressão ”).
Outras iniciativas estão em andamento, valendo destacar o processo no Rio Grande do Sul, provavelmente o mais avançado do país (ver “CECS: onde estamos e para onde vamos ”).
Um ano e meio depois
A criação do CECS-BA, no entanto, provocou a ressurreição do argumento da inconstitucionalidade generalizada.
No dia seguinte à posse dos conselheiros baianos (11/1/2012), o diretor de Assuntos Legislativos da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) reiterou o mesmo argumento utilizado pelo Colégio de Seccionais da OAB em outubro de 2010, ao afirmar que “considera inconstitucional a criação de conselhos estaduais destinados a elaborar políticas de comunicação” porque “a competência para legislar regras para o setor é restrita à União, conforme prevê a Constituição Federal”. Além disso, a criação de conselhos estaduais oferece riscos à liberdade de expressão porque “expõe a imprensa à tutela de um governo”, com risco à submissão a “interesses políticos e eleitorais”.
Da mesma forma que o presidente da OAB em 2010, a Abert informa agora que estuda a possibilidade de entrar com uma ADIN no Supremo Tribunal Federal para suspender a instalação do CECS-BA (ver aqui ).
Corre ainda a informação de que o argumento da inconstitucionalidade teria chegado também – acredite – a bancas de pós-graduação de universidades públicas federais. Projetos de dissertação (mestrado) sobre os CECS estariam sendo recusados por se tratar de “conselhos inconstitucionais” e, portanto, não constituírem “objetos de pesquisa”.
Serviço ao país
Infelizmente, o espírito autoritário ao qual se referia o presidente eleito Tancredo Neves, em 1985, parece ainda prevalecer em alguns espaços do setor de comunicações: o Conselho de Comunicação Social criado pelo artigo 224 da Constituição, ativo por apenas quatro anos, deixou de funcionar em 2006 por omissão ilegal do Congresso Nacional (ver “CCS: Cinco anos de ilegalidade”). Os CECS, apesar de previstos em várias constituições estaduais, mais de duas décadas depois, à exceção da Bahia, não foram sequer instalados e ainda são acusados de “inconstitucionais”.
Diante desse cenário, a OAB e a Abert prestariam um grande serviço ao país se de fato apresentassem uma ADIN ao STF contra o único CECS que existe, o da Bahia. A ADIN os obrigaria a revelar publicamente onde está, afinal, a inconstitucionalidade.
Enquanto isso não acontece, resta àqueles que trabalham pela regulação do mercado de mídia em busca da democratização das comunicações apenas a alternativa de seguir o caminho. A falácia do argumento da inconstitucionalidade genérica precisa ser desmontada caso a caso. E certamente a criação dos CECS é fundamental na batalha pela positivação do direito à comunicação entre nós.
A ver.
Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011.
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