segunda-feira, 13 de junho de 2016

Previdência Rural: contextualizando o debate em torno do financiamento e das regras de acesso

Alexandre Arbex Valadares
Marcelo Galiza

A desaceleração da economia brasileira nos anos recentes tem preocupado o governo federal, que passou a adotar a cartilha econômica ortodoxa como resposta. Estabeleceu-se um programa gradual de reequilíbrio fiscal, cujas metas envolvem a tentativa de produção de superávits primários crescentes até 2019. Neste cenário, o denominado “déficit da Previdência Social” reapareceu no debate público como o principal responsável pelo déficit primário do governo e o tema da reforma da Previdência, portanto, ressurgiu com força na agenda política.

O governo pretende enviar ao Congresso Nacional uma proposta de reforma ainda no primeiro semestre de 2016. Em fevereiro deste ano, o Ministério do Emprego e da Previdência Social propôs que o Fórum de Debates sobre Políticas de Emprego, Trabalho e Renda e de Previdência Social – que conta com representantes dos trabalhadores, dos aposentados e pensionistas, dos empregadores e do Poder Executivo Federal – se dedicasse à discussão de sete grandes temas sobre a Previdência Social. No que se refere à previdência rural, a proposta explicitou, de forma genérica, a necessidade de discutir seu financiamento e suas regras de acesso.

Até o momento, não foram apresentadas pautas mais específicas sobre os temas elencados, mas o debate público tem antecipado algumas questões que o governo pretende atacar. Sobre o financiamento da Previdência Rural, a ênfase da discussão recai sobre o regime contributivo diferenciado para segurados especiais, que dispensa a realização de contribuições mensais e estabelece a contribuição sobre a receita bruta proveniente da comercialização da produção. 

Outra importante questão recorrentemente levantada diz respeito à desvinculação do reajuste do piso previdenciário da regra de correção do salário mínimo, algo que – segundo o governo – não se cogita pôr em negociação, mas que pode entrar na pauta a qualquer momento, a depender das pressões políticas no Congresso Nacional. Segundo as informações oficiais, o atual desenho da política produziu, em 2015, um “déficit” de R$91 bilhões nas contas da previdência rural, enquanto a previdência urbana – essencialmente contributiva – obteve um “superávit” de R$5,1 bilhões. 

Em outras palavras, a Previdência Rural aparece como a grande responsável pelo “rombo” do sistema, e, consequentemente, pelas incertezas dos mercados relacionadas às contas públicas. Sobre os critérios de acesso, o governo tem declarado que estuda propostas de unificação de todos os regimes de aposentadoria em torno de uma idade mínima, provavelmente próxima de 65 anos. 

A ideia geral é que o processo de envelhecimento populacional – resultado tanto da queda da taxa de fecundidade como de avanços na expectativa de vida – demandaria mudanças nas regras previdenciárias para assegurar a sustentabilidade do sistema, e que, nesse contexto, as diferenciações de idade entre homens e mulheres e entre trabalhadores rurais e urbanos deveriam ser superadas. Além disso, há ainda uma crítica mais difusa, que ressalta que os critérios que definem a condição de segurado especial são imperfeitos, o que se expressaria na quantidade de aposentadorias rurais concedidas por via judicial – algo em torno de 30% nos últimos cinco anos. 

Esse indicador revelaria a necessidade de aperfeiçoar a legislação previdenciária rural, provavelmente na direção de incluir critérios “mais objetivos” que restringiriam a cobertura do atual sistema, principalmente por desconsiderar o alto grau de informalidade que marca as relações de trabalho no campo.


Feita essa breve síntese do debate atual, o presente artigo objetiva contrapor-se a essa visão fiscalista que prevalece nas análises sobre o sistema previdenciário. Parte-se, aqui, da defesa da Previdência Rural como política integrante do sistema de seguridade social e presidida, portanto, pela regra da diversidade da base de financiamento, definida pelo art. 194 como princípio constitutivo desse sistema. Nesse sentido, entende-se que as palavras “déficit” ou “rombo” não cabem na discussão: trata-se do gasto com a política de Previdência Rural. 

Ademais, argumentar-se-á que as regras de acesso definidas na Constituição Federal de 1988 e regulamentadas em dispositivos posteriores, além de aderentes à realidade das condições de vida e trabalho rural e às diferenças de gênero, foram responsáveis pela construção da mais importante política social voltada para a população do campo (Delgado, 2015) ou, mais ainda, de um dos melhores programas redistributivos da América Latina (Schwarzer, 2000).

Este artigo sustenta, pois, que mesmo a análise sobre os efeitos fiscais da previdência rural deve ir além da questão estritamente contábil da relação entre gasto e arrecadação previdenciária. Os recursos distribuídos por meio do sistema previdenciário rural às cerca de 9 milhões de famílias atualmente beneficiárias não apenas exercem um papel importante quanto à garantia de direitos – em atenção a uma noção básica de cidadania – e de rendimentos – em nível suficiente para satisfação das necessidades vitais básicas –, como, também, produzem impactos sociais e econômicos de proporções muito amplas.

Os benefícios previdenciários rurais têm impacto significativo no orçamento familiar e na dinâmica das unidades produtivas familiares. No curto prazo, dessa forma, trazem importantes mudanças na lógica econômica das famílias, do ponto de vista do trabalho e do consumo; no longo prazo, fortalecem o processo de reprodução social das famílias rurais, pois funciona como importante indutor da permanência das famílias no campo, reduzindo o ritmo das migrações à cidade e, ao mesmo tempo, permitindo que os jovens, mais escolarizados e com maior acesso à informação, possam construir projetos de vida no rural. 

Esse efeito demográfico, já constatado em modelos de previdência rural de outros países, como na Alemanha (SCHWARZER, 2000a), começa a se fazer notar nos dados socioeconômicos brasileiros, o que renova as expectativas em relação ao fortalecimento de um modelo de desenvolvimento rural com base na agricultura familiar e na segurança alimentar e nutricional. Além disso, as rendas previdenciárias rurais, distribuindo-se majoritariamente por municípios brasileiros de pequeno porte, contribuem para dinamizar suas economias – em áreas rurais e urbanas –, gerando demanda para bens e serviços produzidos e comercializados em nível local. 

Para aferir tal efeito, vários trabalhos comparam os valores pagos em benefícios previdenciários com o PIB municipal, o Fundo de Participação dos Municípios (FPM), a folha de pagamento ou, ainda, o valor de produção das lavouras. Nesses exercícios, conseguem evidenciar sob diversas óticas o que Schwarzer (2000, p.55) observou em pesquisa de campo no estado do Pará: segundo o autor, é de “primeiríssimo interesse do prefeito” que as agências bancárias de suas cidades concentrem o pagamento de benefícios previdenciários da região, uma vez que os impactos sob a atividade econômica local são imediatos.

Portanto, quando reaparecem no debate público questionamentos sobre o suposto “rombo fiscal” produzido pela Previdência Rural, é necessário salientar que os efeitos dinâmicos de um corte arbitrário desses benefícios sobre a atividade econômica podem ocasionar desequilíbrios orçamentários e financeiros ainda maiores, para além dos prejuízos sociais. Não se trata, portanto, de subestimar a importância da responsabilidade fiscal ou reiterar a dicotomia entre a perspectiva fiscalista e a perspectiva de proteção aos direitos – a capacidade de ação do Estado em favor da garantia de direitos não pode ser dissociada de questões orçamentárias –, mas, sim, de alargar o campo do debate público acerca da previdência social para que ele transcenda os limites tradicionalmente colocados e passe a abranger, de fato, o universo das questões sociais que estão direta ou indiretamente relacionadas ao seu tema. 

As discussões em torno da previdência rural não podem ser feitas senão a partir desse ponto de vista ampliado: o amplo contingente populacional beneficiado por essa política – aproximadamente 13,5% da população do país –, a um custo de 1,5% do PIB, autoriza considerar a previdência rural como um gasto social essencial e estratégico e a situá-la entre as grandes políticas sociais do país.

Clique AQUI para acessar a nota técnica na íntegra.

FONTE: Alexandre Arbex Valadares e Marcelo Galiza - IPEA

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