terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Negros, educação superior e lei de cotas


As instituições federais de ensino superior terão quatro anos para implantar o que estabelece a lei, mas em 2013, pelo menos 12,5% das vagas de cada curso terão que ser reservadas nos processos seletivos.

Marcos Francisco Martins

Findado novembro, mês da consciência negra, há muito por se comemorar, mas a comemoração deve ser cautelosa, sem excessos. E isso porque se percebe, de um lado, a evidência de que a luta contra o preconceito e o racismo precisa continuar sendo vigorosa, mas, por outro, nota-se avanços significativos em relação ao reconhecimento das dívidas históricas que o Brasil e os brasileiros têm com a comunidade negra.

A principal dificuldade em reconhecer a referida dívida com a comunidade afro-brasileira reside no fato de que ainda persiste no imaginário nacional o peso histórico da escravidão da forma como foi traduzida por Gilberto Freire, como democracia racial. Disso resulta o equivocado e romanceado entendimento de que a escravidão no Brasil foi diferente da implantada nos demais países, como nos EUA e na África do Sul, porque aqui, acredita-se, a relação entre senhor e escravo foi mediada por certo humanismo cristão, foi algo suavizado. Essa situação tornou-se objeto de pesquisas, como a realizada na década de 1950 por Florestan Fernandes e Roger Bastide, os quais concluíram, contestando Gilberto Freire, que a escravidão brasileira foi uma das mais horrorosas experiências de negação da dignidade humana a uma parcela social, sobre a qual recaiu a exploração econômica, vivida pelos trabalhadores em geral, aliada ao peso do preconceito e do racismo.


A visão de Florestan e de Bastide é um dos fundamentos que orienta e mobiliza milhares de indivíduos, grupos e organizações sociais a lutarem contra a "naturalização" das desigualdades sociais, que sustenta subjetivamente a injusta e objetiva situação econômica, social, política e cultural vivida pela comunidade negra. E por ser efetivamente uma luta, objetiva e subjetiva, essa tem também suas referências, muito embora sejam negadas ou apresentadas de forma distorcida pela história tradicional oficial e pelo discurso escolar. 

Entre as mais importantes figuras ilustrativas da resistência negra destaca-se Zumbi, que no final do século XVII liderou a resistência em Palmares. Além dele, podem ser citadas outras menos conhecidas pelo público em geral, como é o caso dos marinheiros liderados por João Cândido durante a Revolta da Chibata, em 1910, manifestação considerada como marco do movimento negro no Brasil; as várias associações recreativas e culturais negras, bem como os veículos da imprensa negra articulados nas décadas de 1910 e 1920, que criaram condições que deram origem à Frente Negra Brasileira em 1930; o Tetro Experimental do Negro fundado no Rio de Janeiro por Abdias do Nascimento, experiência que possibilitou e estimulou uma série de outras nas décadas seguintes; o Movimento Negro Unificado, criado em 1978, que rearticulou as pautas da comunidade negra após a ditadura civil-militar como proposta política a ser assumida pelo Estado; entre outras.

Todos esses movimentos levam à contestação do mito da democracia racial brasileira, uma construção simbólica que carece de correspondência com as relações sociais brasileiras pretéritas e presentes. Os que "acreditam" nele - o fundamento do mito é a crença! - são desafios pelos dados da realidade, os quais demonstram com clareza que os negros no Brasil são, de fato, um grupo social que sofre com o preconceito, uma distinção de ordem individual, e com o racismo, que socialmente promove a hierarquização social a partir de critérios como a cor da pele, e se expressa institucionalmente, manifestando-se, também, em outras esferas das relações sociais, como na política (apenas 8,5% dos deputados da atual legislatura se declararam negros, sendo que no Senado Federal há apenas dois senadores que assim se identificaram em um total de 81), na academia (apenas 2% dos professores do nível superior se declaram negro) e no mercado de trabalho (entre os desempregados, os negros representam cerca de 90%, sendo o rendimento médio do negro empregado menor do que o do branco com a mesma escolaridade). Assim, preconceito e racismo tornam-se critérios distintivos no processo de ascensão social, constituem-se como específicos "filtros sociais" que injustamente ordenam o âmbito econômico, o mundo político e mesmo a esfera cultural.

Particularmente, no âmbito da educação, é notório o avanço das políticas afirmativas, as quais estão vigorosamente repercutindo neste e nos demais campos da realidade humana, promovendo certas condições de ascensão social. Um dado significativo das conquistas no âmbito educacional são as legislações que têm sido conquistadas a duras penas pelos movimentos sociais, como é o caso da Lei 10.639/03, que exige incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", a qual foi posteriormente reeditada com a aprovação da Lei 11.645/08, que estende para a comunidade indígena os mesmos direitos da comunidade negra. Veja-se que repercussões dessas iniciativas têm sido sentidas: no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) deste ano se verificou que o percentual dos inscritos que se declararam "pretos", "pardos" e indígenas chegou a 52%, algo bem próximo do que representam no Brasil como um todo; nos últimos 10 anos o percentual de negros com curso superior subiu de 4% para 19%, sendo eles, aproximadamente, 52% da população.

Além disso, no segundo semestre de 2012, a comunidade negra teve uma nova e significativa conquista no âmbito educacional; trata-se da Lei 12.711, de 29 de agosto de 2012, a chamada "lei de cotas", que dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico e médio. O foco da norma legal são os estudantes de escolas públicas, negros e indígenas. Em relação às instituições federais de ensino superior, a lei estabelece que pelo menos 50% das vagas serão reservadas aos que cursaram todo o ensino médio em escola pública, com critérios étnico-raciais e renda associados. Isto é, pelo menos 50% das vagas reservadas (25% do total de vagas) serão destinadas aos que tiverem renda mensal familiar bruta igual ou inferior a 1,5 salários mínimos, sendo os demais percentuais da cota reservada destinados proporcionalmente à distribuição étnica de "pretos", "pardos" e indígenas verificada pelo IBGE em cada Estado, os quais disputarão entre si por tais vagas. As instituições federais de ensino superior terão quatro anos para implantar o que estabelece a lei, mas em 2013, pelo menos 12,5% das vagas de cada curso terão que ser reservadas nos processos seletivos.

Considerando que os dados da realidade econômica, social, política e cultural apontam para a ausência dos negros nas instâncias de decisão da vida coletiva; considerando que, atualmente, não existe política de cotas em 27 das 59 universidades; e, por fim, considerando que o acesso ao ensino superior é passo indispensável para saldar a dívida histórica do Brasil com a comunidade negra, a "lei de cotas" contribui muitíssimo para promover a verdadeira democracia em nosso País, que tem que ser racial, econômica, política, social e cultural, e não apenas um mito.

Marcos Francisco Martins é professor-doutor da Ufscar e pesquisador do CNPq
(marcosfmartins@ufscar.br)

Fonte: Cruzeiro do Sul

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